-Gostei disso. Tenho dinheiro. Vou comprar!
– E depois?
– O quê?
– Depois de comprar?
– Vai ser meu!
– E depois?
– …?
Se a pergunta soa estranho, é porque não estamos acostumados a pensar o futuro. A sociedade onde vivemos não nos convida a pensar sobre ele – a não ser criando sonhos individuais de consumo – assim como ela se recusa a considerar qualquer tipo de limite. Esse crescimento infinito que estamos defendendo e querendo apesar de viver num mundo finito não desafia apenas conceitos de espaço, mas também de tempo. Pois sinto lembrar aqui que não somos eternos. Nem nós, humanes, e nem as coisas que compramos.
Não vou falar sobre obsolescência programada, porque fico nervosa. Vou falar sobre nós, humildes mortais. Nas últimas décadas, uma nova classe média teve acesso a um consumo de massa, consequência direta da intensificação e da globalização da produção industrial – não apenas nos países do hemisfério Norte, mas também no Sul e, obviamente, no Brasil. São móveis, objetos, eletrodomésticos, brindes da China e roupas passadas de moda que se acumulam hoje na maioria dos lares ditos “desenvolvidos” e que serão deixados de herança para as próximas gerações. Como se larga uma bomba nas mãos de quem não pediu nada.
Nada errado a princípio: durante muitos séculos, os móveis e objetos que existiam nas casas eram fabricados artesanalmente, consertados quando quebravam e passados de pais para filhes. Mas com a generalização do consumo em massa, as regras do jogo mudaram. Na hora de receber dos seus pais um microondas “velho” de cinco ou dez anos, filhos e filhas muitas vezes já têm sua casa feita. Não querem saber dos bibelôs da sala da vó nem da coleção de VHS escondida numa gaveta vergonhosa. Poucos terão a paciência de transformar cada CD ranhado num porta copo customizado. Infelizmente, hoje, como 20 ou 30 anos atrás, o sonho da maioria das pessoas que vivem nutridas de propagandas e anúncios, é adquirir as suas próprias coisas. Além da primeira necessidade, comprar se tornou um ato de status, de dignidade, de prazer por si só. Quem pode, compra! Como para mostrar que existe. E apesar do crescente abismo das desigualdades a nível global, é muita gente hoje em dia, no planeta, que não resiste ao poder aquisitivo de comprar qualquer coisa barata e desnecessária.
É impressionante, no entanto, a efemeridade desse prazer da compra, enquanto seus efeitos colaterais, por sua vez, são duradouros. Nos apartamentos-gaiolas onde mora boa parte da classe média urbana, as paredes são o primeiro obstáculo físico encontrado pelos impulsivos do cartão de crédito. A multiplicação de brechós e briques nas cidades brasileiras e europeias diz muito sobre essa tomada de consciência. Outro fato sintomático é ver muitos projetos sociais, Ongs, ou movimentos populares recusando doação de roupas, por excesso de estoque.
Quem já esteve de mudança sabe: na hora de juntar e organizar as suas coisas num número limitado de caixas de papelão, elas parecem se multiplicar. O que fazer com isso tudo isso? Perdidos e achados que reaparecem por todos os lados, lembranças – há tempo esquecidas – de uma vida que parece outra… Para quem vive, como eu, numa mudança perpétua, tal questionamento é recorrente, senão obsessivo. As coisas têm seu peso, não apenas simbólico. Toda vez que arrumo uma mala, fico horas olhando pro quarto, desesperada com tanta coisa sobrando. Acumular é descaradamente inviável. Jogar “fora” nunca será uma opção. Pensar o “depois”, significa (também) entender que não existe propriedade sem responsabilidade – se é que existe propriedade, mas isso é outro debate.
Não estou aqui para repassar as minhas neuroses para vocês que também não pediram nada. Sei que o problema é estrutural. A serpente mordeu a própria cauda. A cultura do consumo em massa está colapsando. Dizer que “tem gente demais no planeta” não explica tudo – além de não dispensar nenhuma atitude em relação ao nosso estilo de vida. É a lógica que está errada. Precisamos parar de vincular o bem-estar social e pessoal ao consumo de bens fúteis, descartáveis e muitas vezes viciantes. Precisamos falar em “desconsumo”. Na situação emergencial que vive a humanidade hoje, isso não é nenhum delírio distópico de ambientalista hippie. Também não é negar o direito (fundamental) de cada um a uma vida digna, com uma alimentação saudável, acesso à saúde, educação e cultura. Mas é, sim, levantar um questionamento profundo dos nossos padrões e desejos, um chamado urgente para a valorização de tudo o que se tem e se adquire, uma virada inevitável num planeta sufocado de lixo.