Nessa região montanhosa do centro da França, é tradição, na primavera, depois da neve derreter, levar os rebanhos para o cume da serra, onde passarão o verão inteiro com vento fresquinho e um horizonte a perder de vista.
Dizem que a data certa para subir é 25 de maio e que as vacas não esquecem. Se atrasar um dia ou dois, elas reclamam. Este ano, quando chegamos com alguns dias de atraso no campo de baixo para chamá-las, pareceu mesmo que elas estavam esperando a hora e pedindo para ir logo, embora fossem um pouco assustadas com a presença de várias pessoas estranhas como eu. Começamos juntando o rebanho, encurralando ele com a ajuda dos cachorros que corriam para lá e para cá, delimitando uma área cada vez mais encolhida. Aproveitaram para colocar sinos no pescoço de algumas vacas, acessórios imprescindíveis para localizar os animais lá em cima. O ouvido é o único recurso quando o olhar esbarra na imensidão da paisagem. Cumpridos esses preliminares, abrimos os portões e saímos juntes pela estrada asfaltada que sobe pela serra.
Não sei era para por na conta da ansiedade, mas tinha que ser preparado para seguir o ritmo das vacas. Do alto das nossas duas patas, tínhamos que andar no máximo da velocidade e dar umas corridas de vez em quando para não ficar para trás. Na barulheira dos sinos, o momento também não era muito propício para conversar e quem se arriscava perdia facilmente o fôlego. Mesmo assim, o ambiente era encantador e bem-humorado. E mais valia estar a pé no meio da função do que no lugar dos motoristas assustados que nos cruzavam na estrada, tendo que se espremer entre o gado para abrir-se um caminho.
Me impressionou a doçura dos camponeses com o rebanho. Quem organizava e liderava a atividade eram dois jovens de menos de 30 anos, filhos do dono das terras (e dos animais). Situação bastante excepcional: na França como no Brasil, a vocação do campo tende a se perder a cada geração e é raro um agricultor se aposentar sabendo que as propriedades e atividades permanecerão dentro da família. Mas esses dois meninos não brincam! Quando uma vaca sai do rumo, eles correm atrás chamando-a pelo nome. Sim, pelo nome! Pois cada uma dessas cinquenta e poucas cabeças de gado – que, para o olhar leigo, se parecem bastante uma com a outra – tem seu nomezinho e são reconhecidas à primeira vista, e sem a mínima hesitação, por seus donos. “Essa coisa de colocar número na orelha é obrigatório para rastrear, mas é bobagem! – explica o mais novo. – Eu sei de cada uma quem é o filhote, quem é o pai, a mãe e os avós. Sei qual é a mais brava, a mais carinhosa, a mais distraída, sei quem não gosta de quem. Conheço elas!”
Tá bem. A romantização para por aqui. Essas vacas não são leiteiras. A finalidade é a reprodução, apenas. Entre os bezerros, quem tem a má sorte de nascer macho, vive bem poucos anos antes de ser abatido e exportado pro sul da Europa onde o consumo desse tipo de carne é maior. Vale dizer que enquanto isso, a França importa boa parte da sua carne das Américas. As fêmeas, por sua vez, ganharão mais alguns aninhos de vida antes de serem vendidas como carne mais “nobre”. E naturalmente, algumas delas, mais sortudas, poderão envelhecer no rebanho para trabalhar também na procriação e, no melhor caso, se aposentar “feliz” nos campos abertos da serra.
Fechou o parêntese. Chegando ao último dos 13 km percorridos (em menos de 2h30), torna-se impossível acompanhar a corrida do rebanho. Impossível e desnecessário, pois há tempo que ele está nos guiando e não o contrário. Quando o alcançamos, os bezerros já estão mamando, e as mães saciando-se com a vegetação intocada há 7 meses. Para nós, seres humanos de diversas idades, finalmente reunidos numa casinha de pedra, com fogo na lareira, o prato mais esperado do almoço é o tradicional “aligot”: um tipo de purê de batata, só que com muiiiiiiiiiiiiito queijo. Uma gaita vem animar o fim da refeição regada a vinho, com cantos que resgatam dialetos antigos da região.
Não sei de onde puxamos as forças para dar mais uma caminhada no fim da tarde – talvez do segundo café com Cognac (conhaque) – mas garanto que não perdemos essa última viagem. Deitar na grama no topo do morro mais alto, com sol e vento, e uma paisagem fantástica a 360° foi a melhor das recompensas do dia.
A última vez que eu tinha vindo aqui, eu tinha 3 ou 4 anos.