São nove e pouco da noite. Estou quase chegando. Vim a pé do centro. Sempre atenta a tudo que acontece na rua, olhando para longe, como me ensinaram quando vim morar aqui. Um rapaz está vindo na mesma calçada. Caminhando tortinho e carregando umas bolsas. Não parece estar com maldade, apenas alterado. Ocupa toda a largura da calçada com seu zigue-zague. Resolvo contornar pelo asfalto. Já tenho na mira o restaurante da esquina, que tem sempre um segurança na frente, o que me deixo mais tranquila. Escuto um carro se aproximando. Dou uma espiada para ter certeza que ele me viu. Ele reduz a velocidade e para do meu lado, vidro baixado. Dentro do carro, o rapaz tá com arma na mão. “Me dá o teu celular ou te mato agora!” Saio correndo.
Não deu tempo de pensar muito. Mas fui na a direção certa: para trás. Eles não deram a volta. Aquilo foi apenas uma tentativa oportunista. Mais adiante, eles vão achar outra presa. Mesmo assim, sigo correndo até o final da quadra, onde tem um posto de gasolina. Agacho-me na frente da loja de conveniências, na maior indiferença das pessoas que abastecem o seu carro. Recupero o fôlego.
Brasil de 2022. Mentira. Isso é o mundo. O mundo de muitas décadas.
Muito ouvi falar de uma época em que a vida era melhor. Em todo país, as gerações mais velhas comentam sobre uma “idade de ouro”, onde se podia andar na rua, comprar o que se precisava, viver em paz, sem tanta violência. Época(s) variadas de libertação cultural, de ascensão social, de melhoria na qualidade de vida.
Confesso que eu tenho dúvidas sobre essa tese. Acredito que as coisas já foram melhores para alguns, isso sim. Já houve épocas em que a desigualdade global provocava menos efeitos colaterais para quem se beneficiava dela. Mas a verdade é que o sistema sempre se desenvolveu em cima opressão da maioria – aquela maioria que produz o excesso e consome a sobra. A diferença é que essa opressão já foi mais oculta ou, pior, considerada legítima. Os meios usados hoje para seguir “avançando” têm uma propensão maior a fugir do controle. A injeção de armas nas periferias, a hipocrisia do tráfico de drogas, o endividamento dos mais pobres, assim como a própria violência do estado, nos fizeram alcançar um nível de tensão insuportável, obrigando até xs privilegiades a abrir mão do que tinham de mais precioso: a tranquilidade. Como resposta, construímos prédios e condomínios de “luxo” em toda a cidade, oferecendo um mais complexo esquema de segurança do que devia tinha o rei da França em Versalhes. Enquanto isso, em pessoas não brancas, se chega atirando, sem dar tempo de correr, assim como aconteceu há poucos dias na aldeia Guarani Kaiowá de Amambai, assim como acontece frequentemente nas maiores metrópoles do mundo.
Não existe sequer uma ilusão de paz, como se podia ter antes, em certas classes e certas épocas. Vivemos no medo para não enxergar a raiz do problema: o nosso estilo de vida não poderia se sustentar de forma justa e humanizada, sem exploração de pessoas, sem extrativismo irresponsável, sem violência escancarada.
Não dá para seguir nessa correnteza. Sei que sair correndo não é a melhor das opções. No caso, foi apenas a mais intuitiva. Diga-se de passagem, se eu fosse um homem negro, chegando correndo daquele jeito no posto de gasolina, como reagiriam as pessoas? E se eu estivesse de salto ou vestido? Nem daria para correr! São muitas formas de opressão, numa sociedade onde a distribuição dos recursos que servem para se defender também não é feita à toa.
Do alto dos meus privilégios, eu gostaria de ser mais proativa. De estar cheia de propostas para salvar o planeta e a humanidade, de ser a pessoa santa que chega no assaltante e diz com carinho: “Meu bem, não faça isso…” Mas não. Eu só saio correndo. Saio correndo, como eu tento fugir do lugar que me foi atribuído nesse mundo polarizado. Sem inspiração. E na indiferença de quem segue pondo gasolina no seu carro.