Eu não tive primeiro emprego, não tive casamento, não tive filho nascendo. Não tive esses momentos importantes da vida para me jogar no mundo dos adultos. No dia da minha formatura na universidade, eu tinha fugido para os Andes, mochila nas costas. Nem peguei o meu diploma.
Também não tive marco de entrada na vida profissional. Fui independente cedo, porém de maneira bastante descomprometida, fazendo qualquer trabalho para sobreviver. Nunca me endividei, nunca tive que pagar parcelas nem conta qualquer que prendesse a minha rotina. Nunca tive casa própria, nem moradia onde pudesse me projetar a longo prazo. Se o meu engajamento em lutas sociais me ajudou a entender que o mundo não era todo rosa, ele também me incitou a levar a vida pessoal com uma certa leveza, relativizando a gravidade de qualquer coisa que fosse me acontecer. De fato, nunca sofri violência, nunca passei por grandes dificuldades – a não ser em situações tortas onde eu mesme inventei de me meter. Sempre me senti privilegiade demais neste mundo – e não sem razão. Mesmo viajando, quando a preocupação diária era conseguir comida ou algum lugar seguro para passar a noite, eu costumava encontrar soluções sem muita dor de cabeça.
Sempre tratei de fazer as minhas escolhas com autonomia e juízo, mas também nunca tive que me responsabilizar por nenhuma outra vida que a minha. Não me lembro ter passado por alguma situação que me fizesse pensar: “Poxa, agora a coisa tá séria! Te comporta, seja adulte, que é tudo contigo!” Pelo contrário, vivi até hoje recebendo a proteção de muitas pessoas mais estruturadas e sábias do que eu. Quando crianças me chamam de “tia”, eu olho pro lado, procurando outra pessoa.
Há exatamente dois meses, numa terça-feira à tarde, eu estava num bar com um grupo de amigxs para assistir um debate na televisão – encontro bastante incomum num dia de semana. Pedi uma caipirinha para comemorar e sentei no chão porque todas as cadeiras estavam ocupadas. Coisa de adolescente, mesmo. Meu telefone tocou e não consegui atender a tempo. Foi aí que eu vi que tinha uma mensagem contando (com frases muito confusas) que meu pai tinha acabado de morrer.
Deixei a caipirinha no chão.
E de repente, tudo mudou na minha vida. Os problemas se acumulando já não parecem mais ser de mentira. E lidando com eles, eu sinto que eu já não sou mais a mesma pessoa. É como se o pai tivesse levado com ele um pouco da criança solta que ainda me habitava. Comecei a sentir uma vontade estranha de aterrar. De fincar o pé no caminho. De ter um endereço. De plantar árvores. De escrever projetos. Sei lá. De acolher xs outrxs como sempre fui acolhide.
De ser um alicerce e não mais um ovni.
Ainda estou longe de ter aconchegado no coração toda a tristeza que senti nas últimas semanas. O rito de passagem para o mundo adulto foi brutal e implacável. E ainda por cima, me pegou de golpe. No entanto, sinto que a mudança de perspectiva pode ser bonita. Não idealizo a inocência infantil, nem demonizo as correntes da responsabilidade. São fases da nossa jornada na terra que só cabe abraçar. Há muito para se viver ainda.