Desde o início dessa epidemia, a minha proximidade com o povo da rua me fez relativizar bastante a universalidade do #FicaEmCasa como solução à crise que o mundo está vivendo.Mas eu não tinha ido muito em comunidades e periferias. Ontem, pela primeira vez desde o início da pandemia, participei da ação de uma pequena ONG que distribui 500 refeições por dia em diversos bairros da cidade.
O primeiro embate de realidades foi entrando na vila onde fica a sede da ONG, me deparando a criançada toda brincando no meio da rua e as pessoas se comportando como se estivesse tudo bem. Detalhe: essa vila fica num bairro bastante central na cidade, a três quadras de uma feira orgânica onde quase ninguém se atreve sem álcool-gel no bolso e onde a prefeitura fiscaliza uma distância de 8 metros entre cada banca. Da sede da ONG, saímos de carro e fomos para uma comunidade mais distante. Quando chegamos, dezenas de crianças (e adultos) já estavam esperando a gente, fazendo fila do mesmo jeito que todas as crianças (e adultos!) do mundo sempre fizeram fila na vida: se agarrando e brincando, grudadinhas umas às outras. Claro, ninguém (além da gente) com máscara, ninguém lavando a mão antes de comer e ninguém (mesmo!) cogitando em passar um álcool no garfinho antes de colocar na boca.
Foram 160 marmitas distribuídas em poucos minutos – e tenho certeza que se tivesse mais, não sobraria. Teve quem saiu comendo, quem levou várias pra casa para dar pros avós, quem ficou esperando para repetir, quem chegou atrasado e não ganhou, quem ficou do lado, com vergonha de pedir. Na volta passamos por alguns armazéns e botecos abertos, e bastante gente na rua conversando normalmente.Surreal, eu pensei. SURREAL.
Quer dizer: surreal não são eles! Eles estão levando a vida do jeito que dá.Surreal é ter chegado numa fratura social tão escancarada num momento tão crítico.
Surreal é o cara confinado em casa, limpando com desinfectante um pacote de bolacha que comprou no supermercado, quando um morador de rua está procurando (sem luvinha) algo para comer na lixeira da frente.
Surreal é ver pessoas que tanto criticaram a televisão e as redes sociais nos últimos anos tendo agora essas mesmas mídias como única janela pro mundo. E ainda acreditarem nelas.
Surreal é aquela fila para comer ser 99% preta e você ser um podre de branco entregando uma marmita de feijão e arroz com um coraçãozinho na tampa… E as pessoas ainda te agradecerem.
Surreal é uma classe média incapaz de enxergar algum caminho do meio entre o “Não dá para parar!” bolsomaníaco e o “Não sai pra rua!” – que me parece mais ingênuo do que heroico na sociedade que temos. Surreal é ver 10% do país (ainda) achar que é tudo culpa do Lula, 10% achar que é tudo culpa do Bolsonaro e 80% não ter nem tempo nem disposição para pensar no assunto.
Surreal é 20% concentrar mais riqueza e poder do que os 80% restantes.
Surreal é um auxílio emergencial de 600 pila oferecido pelo estado, porém reservado a quem tem acesso a internet e ainda demorando SEMANAS para sair (quando sai).
Surreal foi a história global que nos levou até aqui. Séculos de uma classe dominante correndo atrás de mais crescimento, mais produção, mais consumo, mais indústria, mais desigualdade, mais injustiça, mais poluição, mais doenças. Surreal foi a aceitação disso tudo durante tanto tempo.
Surreal é convicção repentina de que agora é só parar e ponto final. Como se, parando, a gente fosse também se livrar “disso tudo”.