Foi com o fogo do horizonte roxo que me joguei nessa pedalada. Coloquei um latão de cerveja na mochila e arranquei em direção à Zona Sul. Agosto de 2020: o calçadão da orla do Guaíba estava fechado ao público por motivos de pandemia.
Na pista, o espaço entre os carros era precário, não dava para vacilar. O vento do rio penteava os meus cabelos, aumentando a impressão de velocidade. Azar, fui pedalando sem medo e sonhando que eu voava longe. Ao mesmo tempo que crescia o meu desejo de viajar com curva exponencial, eu sentia cada vez mais pesados os lastros nos meus tornozelos. Compromissos me deixando corcunda. Projetos pairados no céu da vida. E o coração nos bastidores, trocando de roupa.
A noite não demorou para tomar conta do cenário, deixando aos carros a responsabilidade exclusiva da iluminação. Passando o estádio Beira-Rio, subindo na ciclovia, demorei alguns segundos para me inteirar de que não era só eu passeando na orla nessa domingueira. A cena parecia um videogame, com uma tela praticamente preta, e um monte de silhuetas surgindo aos quatro cantos, te deixando apenas uma fracção de segundo para desviar e evitar o atropelamento. Faltava luz na ciclovia-calçada, onde todo mundo andava sem enxergar direito as demarcações da pista.
A verdade é que eu tinha acabado de levantar, depois de mergulhar num sono profundo de 16 horas seguidas, e de ficar mais duas horas na cama.
A verdade, mesmo, é que aquele dia, quando acordei, me dei conta que eu não tinha motivo nenhum para sair da cama. E que poderia ficar bem mais tempo assim. Dias… semanas… Quem ia saber?
A claridade artificial voltou na frente do museu Iberê Camargo, onde a pracinha parecia bem mais acolhedora. Pessoas estavam sentadas em grupos de dois ou três, aproveitando o respiro dessa noite mansa, trégua inesperada do inverno. Mais adiante, a ciclovia se esvaziava e se diluia na escuridão novamente… Eu poderia ter parado ali para ver se valia a pena seguir, ou tomar a minha cerveja antes de esquentar. Mas não deu tempo de pensar muito. Quando dei por mim, já estava sozinha no debaixo das estrelas, só que com bem menos carros passando para iluminar o caminho. Fui na fé, traçando uma linha invisível e incerta, procurando o meu lugar na linha tênue entre a sanidade e a loucura.
Ao penetrar na Vila Assunção, muda o clima. Ruas tranquilas, casas de portas fechadas, movimento escasso. Um ar úmido e sem vento vem acariciar a sua pele, como um passe de serenidade. Fui até o fim da rua, para chegar de novo na beira do rio. Larguei a bicicleta no chão e fui sentar na grama. Fora o ruido suave das ondas na água, era um silêncio só. No horizonte, brilhavam as luzes da cidade de Guaíba. Atrás de mim, havia uma praça vazia e alguns veículos estacionados. De vez em quando passava um carro, um corredor ou um ciclista; ressoavam também algumas vozes vindo de mais longe ou de dentro da minha cabeça. O latão já estava quente, mesmo.
Eu não saberia dizer se eu me sentia segura nessa paz estranha. Era mais cômodo acorrentar a mente, não pensar demais sobre a possibilidade de aparecer alguém, ou desse alguém me incomodar.
Um cara veio caminhando. Devia ter três vezes meu tamanho. Quando me viu, ele parou a uns dez metros de mim. Puxou um celular e ficou ali, dando um tempo… Como se ele mesmo estivesse desconfiado. Tentei firmar o coração dentro do peito. De repente, surgiu um corredor do outro lado da rua. Como se sentindo mais seguro, o grandão voltou a andar e passou por mim fazendo questão de não dar bola. Mas chegando na bicicleta escorada um pouco mais adiante, ele parou de novo e virou para a minha pessoinha sentada, agora curioso, hesitando. Mas desistiu e seguiu seu caminho.
Respirei fundo, várias vezes.
Engraçado… acho que foi neste bairro que dormi as minhas primeiras noites em Porto Alegre, há exatamente 13 anos – lembro ter chegado aos meados de agosto de 2007, junto com um grupo de uns quinze intercambistas, para passar um ano na cidade. No lugar que nos acolheu juntos na primeira semana, fomos iniciados à doçura da moranga caramelizada e do guaraná. Demos também algumas voltas nos arredores, estranhando, eu lembro, as casas gradeadas, e os lixos pendurados no alto. Lembro também que uma noite, andando nessas ruas sempre vazias, a gente despertou sem querer toda a cachorrada do bairro, que se pôs a latir acordando decerto o conjunto dos donos – tão bem protegidos que não podem dormir em paz.
O cara reapareceu na esquina. O gigante, aquele, de volta. Não esperei ele chegar perto: levantei, subi na bici e dei algumas pedaladas pela calçada para me refugiar perto de um casal sentado mais adiante – pois aquelas vozes não vinham de dentro da minha cabeça. Fiquei alguns minutos naquele lugar, até o cara passar de vez e seguir o seu caminho. Eu me encontrava na verdade num um bloco de concreto, parecendo um bunker dominando o rio e tomando certamente o lugar de algumas árvores previamente cortadas. Havia uma pixação, bem na minha frente, no concreto. Uma única pixação que se destacava naquele cinza bruto e triste: “EU SOFRI SORRINDO”
Linha tênue.
Como eu não tinha a mínima vontade de pegar o caminho de volta, resolvi dar uma caminhada por dentro do bairro, como nos velhos tempos, empurrando a bicicleta nos paralelepípedos irregulares. Na primeira quadra onde me aventurei, dois ou três cachorros começaram a latir. E logo mais um. E outro. Outros. A rua inteira.. Confesso que eu dei risada, lembrando dos bons tempos! Eles urrando e eu rindo, sozinha no meio da rua!
Perambulei algumas vielas sinuosas, até me dar conta que, na verdade, eu estava subindo. Não precisava mais do que isso para me definir uma meta: precisava ver se chegava em cima.
Andei mais uns 20 minutos sem enxergar praticamente nenhuma viva alma. Era só casarões, com ou sem luz, e algumas guaritas nas esquinas, de portas fechadas. O barulho dos meus passos dominava a trilha sonora enquanto o visual dialogava com infinitas lembranças. Vários lugares rebrotaram aleatoriamente na minha memória. Córdoba. Biarritz. Alguns morros do Rio. Algum lugar na Roménia.
Cheguei num lugar que me pareceu ser o topo: uma estação do DMAE que parecia totalmente abandonada e que, de fato, não encontrei depois em nenhum mapa. De deserto, o ambiente passou a ser tenebroso e esse climão de insegurança não me agradava nem para brincar. Desci por uma rua escondida, deixando a bicicleta rodar e pular nos buracos do chão detonado.
Em poucos minutos, eu desembocava na esquina de uma avenida grande que não consegui identificar. Meu coração sussurrou que era para ir pra direita. Ainda bem que o cérebro acordou a tempo para identificar que essa avenida só podia ser a Wenceslau e que o Centro era pra esquerda.
Voltei em linha reta, passando aquela fileira de lojas iluminadas e fechadas, num domingo que parecia segunda-feira e vice-versa. Calçadas assombradas e pessoas misteriosas. Esses dias uma live nossa, com a minha banda de música, foi cancelada alegando que não se poderia ter alegria num momento como esse que estamos vivendo… Me encontro desde então boiando numa preguiça infame de retorquir ou fazer alguma coisa que faça sentido…
O giro do pedal revirava as minhas ideias, lá no fundo da minha cabeça. Quando desemboquei, de novo, na beira do rio, reencontrei o vento, cientificamente contra, como sempre. Eu queria sentir outra coisa na pele. Não só o vento. Algum medo. Alívio. Raiva. Carinho.
Já estava quase chegando no Centro. Passando o terreno ermo do teatro Por do Sol, com suas bancas fechadas na beira da pista e as árvores tapando a luz das estrelas. Mal consegui enxergar um rapaz sentado ali, num tronco caído. Ninguém perto e nenhum carro passando. Ele sentado, calça de abrigo, sacola na mão. Passando mal. Vomitando. Eu sozinha. No escuro total. Acelerei.
E parei. Analisei a situação. Ninguém vindo. Na minha frente, a 300m, a luz dos holofotes iluminava um escasso movimento de pedestre e carros. Mas aqui nada. E olhando para trás, o cenário parecia um quadro-negro com nuances de sombra. Já nem enxergava mais o cara.
Tomei coragem.
Voltei.
Ele estava no mesmo lugar.
– Mano, tu quer uma água?
O guri se levantou num susto e, virando para mim, aliviou num sorriso constrangido.
– Aceito!
Alcancei a garrafinha que estava na minha bicicleta.
– É que estou passando mal… Comi muito, bebi também… mas tá tudo bem…
– Tranquilo. Acontece. Uma água vai bem.
– Te agradeço. Deus te abençoe.
– A ti também.
Fim da história. Retomei meu caminho, rumo à casa, sentindo que nada mais ia acontecer nesse dia.
E juro que aquela troca de sorriso foi uma das melhores coisas que aconteceu comigo nos últimos tempos.