A ideia de fazer um filme sobre o Jornal Boca de Rua não era inédita. E tenho por mim que ela passaria pela cabeça de qualquer cineasta, depois de conhecer esse jornal – integralmente feito por pessoas em situação de rua – e os seus “protagonistas” tão carismáticos. Mas como toda ideia encantadora, a prática é outra coisa.
Conheci o grupo do Boca no início de 2008, mas foi apenas em 2015 que comecei a formalizar este projeto de documentário. Junto com um amigo produtor, fizemos um piloto, escrevemos um roteiro, montamos um orçamento, mapeamos recursos, tentamos alguns editais… sem sucesso. Confesso, no entanto, que não tive muita resistência neste caminho. Desanimei rápido. A pasta “FILME BOCA” foi parar no fundo de um velho HD e a minha vida acabou tomando outros rumos. Mudei de cidade, me afastando fisicamente da gurizada… mas fiquei à distância com aquela sensação amarga de ter deixado algo para trás…
Até que um belo dia, ao acordar, me caiu a ficha! Simples assim! Me dei conta que eu tinha que fazer aquele filme. Era agosto de 2018. Pronto. Resgatei o projeto, dividi por 20 o orçamento inicial, fiz uma vaquinha na internet para comprar um equipamento de segunda mão e voltei voando.O pontapé inicial das filmagens foi dado totalmente no escuro, em janeiro 2019, depois de muito tempo sem frequentar o grupo. E foi então que as coisas começaram a acontecer. Por “coincidência” (?), vários integrantes afastados resolveram voltar na mesma semana e acolheram a notícia com o maior entusiasmo, dando ideias, marcando filmagens, abrindo-se de maneira surpreendente frente à câmera, como se fosse um velho conhecido. Todos os lugares onde chegávamos nos abriam as portas; até o São Pedro se fez parceiro, atendendo constantemente os meus pedidos de sol e chuva! Alguns amigos também surgiram para ajudar, na produção e no set, mas muitas vezes, eu saía sozinha, de bicicleta, com alguma intuição, até mesmo de noite, para ver se não ia me deparar com algum dos protagonistas na rua… sentindo que era o momento… E de fato, muitas cenas que eu desejava muito filmar, se desenvolveram por si só “casualmente” na frente da câmera. Outras que eu não imaginaria me emocionaram mais ainda. Raramente na vida eu tive tanto essa sensação de estar no lugar certo, fazendo o que eu tinha que fazer.
Claro que teve também muitas dúvidas, muitos desencontros, muita solidão, muitas noites viradas, muita ansiedade apertando o peito, muito desespero com as minhas falhas, muita raiva da minha própria incompetência. Momentos nada isolados em que só me restava confiar, teimosamente, no “Boca”, nos “guris”, na vida, no que for. “Vaidartudocerto” eu repetia para mim, dia e noite. Afinal, o nosso “cronograma de produção”, constantemente atualizado conforme os numerosos imprevistos, acabou nos levando até a beira do inverno. Encerramos as gravações no dia 5 de maio de 2019 com mais de 40 horas filmadas em quatro meses. Agora “só” restava cortar.
Cortei. No sentido mais literal da palavra. Transcrevi todas as cenas e falas em pedaços de papel e montei um quebra-cabeça gigante no chão do meu quarto, no qual eu ia mexendo aos domingos, recortando, misturando e rasgando… procurando alguma luz nos escassos raios de sol que se infiltravam pela janela.
Claro que para sair do papel e chegar a algo parecido com cinema, a intervenção – e, no caso, a baita parceria – de alguns profissionais se tornou indispensável. Na verdade, o tamanho do trabalho de uma pós-produção é algo indescritível. Foi apenas em outubro, depois de três meses sentados na ilha de montagem, que conseguimos fechar uma versão de pouco menos de duas horas: um corte provisório que foi assistido e aprovado com devidos gritos, risadas, xingamentos e aplausos pela equipe do filme (os integrantes do jornal) numa sessão memorável. Mas ainda faltavam cinco meses de trabalho – e umas quantas crises de “vaidartudocertovaidartudocertovaidartudocerto” – para chegar a um resultado final com verdadeira “cara” de filme.
Pois é. De FILME.
Com imagens, som, músicas, efeitos, letreiros, arquivos, título, créditos, cartaz, trailer, sinopse, elenco, fotos, site, legendas, contratos, certificados e cópias em diversos formatos… Tipo um filme!
E já que, nessa história, nada aconteceu como previsto, o tal de filme ficou pronto na semana anterior ao fechamento de quase todas as salas de cinema do mundo, até hoje sem previsão de reabertura, pelo menos no Brasil. O destino se puxou na ironia. Azar. Paguei para ver e andei inscrevendo ele em vários festivais e mostras, sem saber onde isso tudo nos levaria. Baixar a cabeça já não era mais uma opção.
Alguns dias atrás, recebi a notícia duma primeira seleção num festival internacional, em Nova York e Miami. Vai ser online, em setembro. Eu não sei como me sinto… Aliviada… Exausta… Claro que eu queria estar (mesmo) feliz e poder (mesmo) compartilhar. “Lembre-se: felicidade é uma viagem, não um destino.” Grande Henfil!
Sigamos.