Não acredito em reencarnação. Mas também, nunca me conformei com a ideia de ter uma vida só. Por mais gostosa que seja a minha rotina num ambiente de paz e cheio de gente amada, a simples perspectiva de um futuro sem prazo no mesmo lugar é desesperadora. Preciso acreditar que existe um “depois” radicalmente diferente e me dar a chance de viver esse depois. Por isso, ao sentir que consegui estabelecer uma vida tranquila num determinado contexto, eu pulo para outra.
Agora, acho que já estou na quinta vida – pensando nos lugares onde morei, nas relações, trabalhos, referências, costumes, crenças e paixões, entre outras coisas. São vidas sucessivas numa linha do tempo, não paralelas. Porém, a passagem de uma para outra não é uma ciência exata. É feita de tateadas, dúvidas, “vou-não-vou”, até mesmo de parênteses, quando você se joga plenamente numa outra vida e depois retorna à anterior que não se tinha encerrado direitinho. Esse tipo de viagem no tempo-espaço deixa a gente doida, mesmo, porque ao lembrar daquelas outras aventuras que só você e mais ninguém viveu no mundo de cá, bate aquela pergunta sem resposta: “Mas será que isso rolou, mesmo?” No meu caso, aconteceu quando, morando em Porto Alegre, caí numa imersão de dois anos no Rio de Janeiro. Uma curta vida que não deixou de valer a pena. Mas a volta me deixou meio deslocade por um tempo!
Agora, a “passagem”, mesmo, acontece quando se larga de fato as amarras, encerrando longos processos para começar algo totalmente novo e desconhecido num outro lugar. Não estou aqui falando em morte, apenas em “passagem”. Esse lance de morrer, deixa lá pro final da Vida maior. No entanto, essa passagem também não é uma simples mudança de endereço. Ela representa uma troca radical, não só de paisagem ou hábitos, mas sim de tudo o que se tem de referência material e imaterial. É como ser criança novamente.
E não posso esconder que se trata de uma experiência mágica… apesar do frio na barriga – não é por nada que todo bebê nasce chorando. Redefinir a sua identidade, sem o peso das expectativas, sem precisar se referir ao que você já fez ou não fez, é uma experiência de pura liberdade. A tentação é grande, inclusive, de zerar tudo de verdade, começar outra profissão, outras atividades, mudar de nome ou de cara, sei lá… Óbvio que, na prática, não é bem assim. Em poucos dias, você já cria novos laços, novos afetos e, no fundo, nunca deixa de ser aquela pessoa forjada em todas as suas vidas passadas. E à noite, quando se encontra só, ressoa a voz interna de um Saturno acelerado que te cobra um mínimo de coerência nessa jornada de vidas enfileiradas… porque também né, não é só brincar de viver quando o mundo tá f…
Enfim, é mais ou menos esse processo que andei passando nos últimos meses, enquanto me organizava para trazer as últimas malas (e cuias!) de Porto Alegre pro Recife. O frio na barriga, os berros, a luz vislumbrante, a tentação de voltar AGORA pro útero da mãe… e ao mesmo tempo o mar de novidades, o oceano de possibilidades pela frente, a curiosidade impulsiva e a vontade súbita de cortar o cordão com os dentes e sair correndo pelade por aí.
O segredo é que não se deve olhar para trás. Neste mundo moderno todo emaranhado em redes virtuais, manter a mente presente no corpo é uma tática de proteção e autocuidado, para não tropeçar na caminhada. Porque nenhum coração tem a versatilidade da inteligência artificial para ficar conectado em todo lugar ao mesmo tempo. Da mesma maneira, não dá, infelizmente, para ficar indo e vindo toda hora. A ponte entre duas vidas é uma passarela bamba que dá uma vertigem danada. Eu brinco que toda vez que viajo para França, por exemplo, eu volto com mais cabelos brancos. Até desconfio que a luz pálida do banheiro do avião acentue um pouco os reflexos prateados. Mas agora, no voo que me trouxe de Porto Alegre pro Recife, foi um punhado de fios brancos que brotou na minha testa. Na próxima viagem, eu vou ter que segurar a bexiga mesmo.
Pois, arredondando alguns anos de trânsito e parêntese, passei em Porto Alegre não menos de quinze anos bem vividos. Uma vida adulta. Uma vida que não se pode resumir em 10 fotos num post do Instagram. Nem mesmo em milhões de palavras e lembranças. No entanto, existe um recorte transversal a tudo o que eu poderia contar sobre essa cidade desde o momento em que pisei naquele chão pela primeira vez e até a última despedida: o abraço. Pois, por mais que esse povo do Sul leve a fama de ser “frio” ou “distante” (jura!), eu ainda não achei nenhum lugar no mundo que abrace como os gaúchos abraçam. É um aperto revigorante que recarrega todas as baterias do teu corpo em cinco segundos.
Desse abraço, sim, vou sentir saudade. Dele, de muitos amores e da infinidade de momentos incríveis que sua falta cotidiana me traz à memória.
Mas se existe algum sentido nessa Vida de vidas, algum crescimento por trás disso tudo, alguma construção de pessoa tratando de ser boa, esse Abraço ainda promete reverberar por muitos anos dentro de mim.